como os chineses se digladiam pelo delivery no Brasil
O mercado de entregas de refeições avança de forma acelerada em ao menos duas frentes no Brasil. Uma delas é operacional, com um faturamento de R$ 21,8 bilhões no primeiro semestre deste ano, quantia que representou um salto de 13% em relação a 2024. A outra é jurídica. Os principais integrantes do setor são protagonistas de algumas das mais ferrenhas disputas judiciais em curso no país.
Uma dessas brigas opõe os gigantes chineses do grupo Meituan, dono da Keeta, e do conglomerado DiDi Chuxing, que controla a 99Food. Nesse caso, correm processos envolvendo as duas empresas tanto na Justiça como no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Outro conflito, que também tem o Cade como palco, coloca em lados opostos do ringue os donos de restaurantes e o iFood, que detém cerca de 80% do segmento no Brasil (leia mais sobre o assunto neste link).
No primeiro caso, antes mesmo de prestar qualquer serviço de delivery no país, a Keeta foi à Justiça e ao Cade contra a 99Food. Logo de cara, ela entrou com dois processos contra a rival.
Em um deles, o confronto teve como alvo o marketing digital. Nesse caso, a Keeta acusou a 99Food de comprar palavras-chave no Google Ads com o termo “Keeta” e correlatos. Com esse recurso, ao pesquisar “Keeta” no site de buscas, o consumidor encontra anúncios patrocinados da 99Food, que ficam acima dos resultados orgânicos da própria Keeta.
Não há decisão definitiva sobre o caso, mas, em 12 de agosto, a Justiça concedeu uma liminar determinando que a 99Food não utilizasse termos relacionados à Keeta em campanhas patrocinadas na internet. Além disso, na discussão do mérito do tema, a Keeta pede aos tribunais uma indenização de R$ 100 mil por danos morais.
Restaurantes “estratégicos”
No outro processo, o duelo ocorre por supostas práticas anticoncorrenciais. Nessa ação, também na Justiça paulista, a Keeta acusa a 99Food de ter firmado contratos com uma “cláusula de banimento” da empresa com “restaurantes estratégicos”.
Alguns estabelecimentos comerciais, diz a Keeta no processo, são classificados como “estratégicos” porque sua presença em plataformas de entrega é considerada um fator determinante para atrair e reter usuários. Além disso, eles influenciam comerciantes menores que estão em busca de visibilidade e fluxo de pedidos a ingressar no ecossistema do aplicativo.
“Clausulas de banimento”
De acordo com a ação, “dados coletados pela Keeta” mostram que cerca de 100 restaurantes foram abordados pela 99Food, com o “objetivo de firmar contratos contendo cláusulas de banimento”. A 99Food também estaria oferecendo aos restaurantes “valores financeiros significativos como contrapartida direta pela aceitação da cláusula restritiva”. E quem descumprisse o acordo, teria de pagar uma multa compensatória à 99Food. “O incentivo não é simbólico”, diz a Keeta no processo, apontando que ele ultrapassaria a cifra de R$ 900 milhões.
Há mais. A Keeta alega que as exigências feitas pelo 99Food nos contratos não incluem o iFood. Por isso, ela também acusa a 99Food de tentativa de formação de um duopólio no mercado de delivery.
Acusações contestadas
A 99Food nega todas as acusações. A empresa diz que chegou a atuar no delivery de comida no Brasil, em 2023. Deixou o mercado, porém, porque considerou que era impossível concorrer com o iFood na ocasião.
Em 2024, reiniciou o serviço de entregas, mas de pequenos itens, como documentos, tanto por meio de carros como de motos. Ocorre que o serviço registrou um crescimento de 125% e nem sequer incluía a área mais promissora do segmento, que é o delivery de comidas. Foi aí que a 99 começou a conversar com restaurantes para entender as necessidades do setor. Em junho, a empresa relançou o serviço de entregas de refeições, em Goiânia (GO).
Fisgar a clientela
Para atrair a clientela, logo de cara, a 99Food zerou as principais taxas cobradas pelo iFood dos restaurantes por 24 meses. No caso, dizem fontes consultadas pelo Metrópoles, tratava-se de comissões que variavam de 17% a 23% sobre o preço dos pedidos. A estratégia consistia em fazer com que os consumidores pagassem no delivery o mesmo valor cobrado nos balcões e mesas dos restaurantes.
Além disso, a empresa passou a pagar R$ 250 aos entregadores que fizessem 20 serviços diários com a 99, quer de entregas de comida, quer de transportes pelo 99Moto, por exemplo. O resultado foi que nos primeiros 45 dias da operação mais de um milhão de pedidos foram feitos em Goiânia.
Em relação aos contratos com restaurantes, a empresa defende-se dizendo que eles não caracterizam práticas anticoncorrenciais e eles são normais no setor. A 99Food também contesta a acusação de tentativa de formação de duopólio. Nesse caso, alega que os contratos não incluem o iFood, porque nenhum estabelecimento comercial aceitaria fazer um acordo que excluísse a empresa líder do mercado, responsável em alguns casos por mais de 50% do faturamento de muitos comerciantes.
Altos investimentos
Além de ações na Justiça e no Cade, a guerra no mercado de delivery no Brasil também está sendo travada em torno das promessas de investimento parrudíssimos no país. Elas somam cerca de R$ 25 bilhões até 2030.
A Keeta, por exemplo, anunciou um aporte de R$ 5,6 bilhões nos próximos cinco anos. A 99Food falou em R$ 1 bilhão até meados de 2026. A colombiana Rappi já mencionou R$ 1,4 bilhão em três anos. Em agosto, o iFood disse que investirá R$ 17 bilhões até março de 2026, para impulsionar o tráfego na plataforma, aumentar a recorrência de compras no aplicativo e ampliar seu negócio de crédito. A julgar pelas declarações dos executivos das empresas, não faltam recursos para que a disputa siga no Brasil, tanto nas ruas com as entregas como nos tribunais.

